Cogito ergo sum
Chovia copiosamente. Estava frio. Da varanda podia ver no
restaurante defronte de minha casa, duas mesas em que comensais famílias agasalhavam
o ser. Confortáveis. Cálidos. Na rua que se nos entremeava, um camião de
recolha do lixo levava ao dependuro dois homens que recolhem, todas as noite, o
lixo de outros seres. Um coberto com um oleado amarelo. Outro sob um guarda-chuva
lilás. Ambos encharcados. Provavelmente enregelados.
Num primeiro momento fui assaltado pela incongruência de tal
quadro. Homens rudes, que recolhem lixo, cinzento, putrefacto, fétido, como que
apêndices de uma máquina que devora o que outros excretam, abrigados em parcos
acessórios coloridos e festivos. Mas eis que logo se me assomou a imagem dos
outros, comensais, cálidos. Meu Deus, o contraste. Que dois mundos tão próximos
e tão díspares. E eu, atónito, entre ambos (literal e metaforicamente). Percebi
nesse instante o sonho impossível (utópico?) de Marx. Ele mesmo uma disparidade
na filiação, de uma pátria que pariria o Nazionalsozialismus.
Pena que este sonho de Marx tenha sido comungado por
charlatões da filosofia política. Oportunistas do momento. Mao, Jong-Il … e Un,
Castros, Chavez, que em nome de um ideal executaram o seu oposto. E outros,
inócuos, inconsequentes, indigentes. Toda uma bandalha de non sequitur. Desobrigo eventuais mas raríssimos exemplos, qua
acabaram vítimas de si mesmos. Perdeu-se, nestes e noutros entretantos, a
essência. O ideal de um mundo igual. Um mundo sonhado em que todas as almas
nascem iguais, em direitos, em deveres, em oportunidades. No direito a sonhar,
a planear, a fazer e a ser.
Pudessem ao menos as almas trocar de corpos, como que num
rodízio de consciências, para que todos pudessem sentir, de quando em vez e
alternadamente, quer a comensal calidez quer a enregelada existência da permanência
quotidiana. Talvez até, assim, o sonho de Marx fosse desnecessário, pois seria
o miserável ser humano provido de hetero consciência.
E a partilha, a compaixão, a bondade, a generosidade, não fossem qualidades
apreciáveis, mas antes realidades substantivas.
Para quê poder ter a opção de praticar o bem, se o mal não
fosse sequer opção. Ah, espécie aviltante…
Se acha que o que acabou de ler é uma apologia a um ideal
político, leia de novo. Simplesmente, cogito
ergo sum.
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