10 de outubro de 2014

Uma mente desocupada, é o recreio do demónio.

Uma mente ociosa é o recreio do demónio. É mais uma daquelas frases que lí nas legendas de um qualquer filme e que, por alguma razão, guardei. Hoje, apetece-me imenso reescrevê-la. Uma mente desocupada, é o recreio do demónio.
Cobiço esmiuçá-la, estudá-la, compreendê-la. Quando temos tempo livre e pouco para fazer, alguns de nós resolvem pensar. Pensar na vida, pensar no passado, pensar no futuro. A uma velocidade tal que pensamentos e sentimentos se misturam e complementam, poluindo-se biunivocamente, e tornando tudo muito confuso. Entramos assim numa espiral de loucura, de insanidade, em que tudo é posto em causa e não somos capazes de discernir a realidade da fantasia, o inovador do imbecil, enfim, o certo do errado. Uma mente perdida neste emaranhado não é uma mente ociosa. É uma mente que, por desocupada, resolve entreter-se com o que de mais lamacento vive no nosso subconsciente.
São sentimentos que nos assaltam. Que nos causam dúvida e incerteza. Que nos levam à angústia e à depressão. Podiam ser sonhos e planos para um futuro risonho. Mas são os gatos que brincam com as baratas, e não ao contrário. As circunstâncias em que por vezes nos encontramos levam-nos a colocar tudo em causa. Quem somos? O que queremos? O que querem de nós? Alguém nos quer? Ou nos não quer? De quem é a culpa?...  E então chega o medo.
Culpa e medo são dois bichos papões que carcomem o nosso ser subconsciente e inconsciente. É o medo que nos impede de caminhar descontraidamente sobre o abismo. É a culpa que nos impede de mandar que outros o façam. E portanto são importantes. Mas quando lhes damos espaço eles logo tratam de se “esticar”. Começam por ser convidados de cortesia, mas logo se instalam abusivamente. Daqueles que permanecem e insistem, mesmo quando já estamos fartos deles e queremos que se vão embora. Muitas vezes, não vão. E vão ficando. Vão permanecendo. E abusando da nossa hospitalidade vão se tomando do espaço do nosso ser. Alguém, por descuido ou por abuso, os deixou à vontade. “Façam de conta que estão em vossa casa”.
E então passamos a ter medo de viver. De amar, de sentir, de arriscar. E culpa pelo facto de a nossa vida existir. Culpa por acharmos que fizemos algo de errado. Culpa por acharmos que fixemos por ser deixados sozinhos.
O mais ridículo é que muitas vezes se sente culpa por se achar que perdemos algo, que o outro deixou de nos dar, porque teve medo de vir a ter culpa. Ou temos medo de vir a ser os culpados de instilar nos outros o medo, e por isso deixarmos de os ter. E por tanto só nos resta concluir que o medo e a culpa são os grandes culpados dos demónios que habitam a nossa mente desocupada. E apetece-me chutá-los para longe. Mas tenho algum receio que isso possa ser o meu fim e de vir a ser eu mesmo o principal responsável. Valha-me Deus.


Barcelos, Outubro de 2014.

27 de janeiro de 2014

Cogito ergo sum
Chovia copiosamente. Estava frio. Da varanda podia ver no restaurante defronte de minha casa, duas mesas em que comensais famílias agasalhavam o ser. Confortáveis. Cálidos. Na rua que se nos entremeava, um camião de recolha do lixo levava ao dependuro dois homens que recolhem, todas as noite, o lixo de outros seres. Um coberto com um oleado amarelo. Outro sob um guarda-chuva lilás. Ambos encharcados. Provavelmente enregelados.
Num primeiro momento fui assaltado pela incongruência de tal quadro. Homens rudes, que recolhem lixo, cinzento, putrefacto, fétido, como que apêndices de uma máquina que devora o que outros excretam, abrigados em parcos acessórios coloridos e festivos. Mas eis que logo se me assomou a imagem dos outros, comensais, cálidos. Meu Deus, o contraste. Que dois mundos tão próximos e tão díspares. E eu, atónito, entre ambos (literal e metaforicamente). Percebi nesse instante o sonho impossível (utópico?) de Marx. Ele mesmo uma disparidade na filiação, de uma pátria que pariria o Nazionalsozialismus.
Pena que este sonho de Marx tenha sido comungado por charlatões da filosofia política. Oportunistas do momento. Mao, Jong-Il … e Un, Castros, Chavez, que em nome de um ideal executaram o seu oposto. E outros, inócuos, inconsequentes, indigentes. Toda uma bandalha de non sequitur. Desobrigo eventuais mas raríssimos exemplos, qua acabaram vítimas de si mesmos. Perdeu-se, nestes e noutros entretantos, a essência. O ideal de um mundo igual. Um mundo sonhado em que todas as almas nascem iguais, em direitos, em deveres, em oportunidades. No direito a sonhar, a planear, a fazer e a ser.
Pudessem ao menos as almas trocar de corpos, como que num rodízio de consciências, para que todos pudessem sentir, de quando em vez e alternadamente, quer a comensal calidez quer a enregelada existência da permanência quotidiana. Talvez até, assim, o sonho de Marx fosse desnecessário, pois seria o miserável ser humano provido de hetero consciência. E a partilha, a compaixão, a bondade, a generosidade, não fossem qualidades apreciáveis, mas antes realidades substantivas.
Para quê poder ter a opção de praticar o bem, se o mal não fosse sequer opção. Ah, espécie aviltante…

Se acha que o que acabou de ler é uma apologia a um ideal político, leia de novo. Simplesmente, cogito ergo sum