23 de dezembro de 2006

Bolha de Sabão

Somos bolhas de sabão.

Somos todos bolhas de sabão, que voam aleatórias pelo ensejo do destino. Feitas por Deus, o amigo imaginário dos adultos. Esse amigo imaginário que explica o que não tem explicação e que nos cria a ilusão de conforto quando o destino se nos afigura sombrio.

Bolhas de sabão. Voam aleatoriamente chocado umas com as outras, aproximando-se, repelindo-se… Umas chocam e rebentam… Outras chocam, resistem, afastam-se… e depois rebentam. Outras chocam, fundem-se, e depois rebentam. Somos todos bolhas de sabão. Voamos aleatoriamente. Rebentamos.

E neste voo aleatório criamos a ilusão de que podemos controlar a trajectória. Criamos a ilusão de que podemos cobrir a nossa bolha transparente com cores opacas. Mas as cores são apenas o reflexo do Sol. Nós criamos a ilusão. Deus tem um sentido de humor muito peculiar. Cria as bolhas e depois fá-las rebentar. Diverte-se deixando que as bolhas de sabão voem numa entropia, pululando entre emoções, desejos e projectos…

Mas todas rebentam… Mesmo as que acreditam que não.

Em algumas delas a ilusão torna-se tão crível que quase parece realidade. Há mesmo quem acredite ter uma cor opaca. Há quem ouse afirmar que controla a cor que reflecte. Há quem fique tão obcecado pela sua cor, há quem acredite que é tão opaco que chega a pensar que é pedra, em vez de bolha. Mas as pedras não voam. Nem sequer voam aleatoriamente.

Voemos. Deixemos que o destino nos conduza, sem criarmos ilusões. Não tenhamos a ousadia de pretender controlar a nossa trajectória. Voemos. Escutemos a música que se cria pelas bolhas que colidem. Apreciemos as cores criadas pelo reflexo do sol, mais do que aquelas que as bolhas pretendem fantasiar. Mas saibamos que somos apenas bolhas de sabão que voam aleatoriamente. Todas rebentam… mais tarde ou mais cedo.

8 de dezembro de 2006

Pedaço de História

Às minhas avós

À avó Rosa

Subi a rua a correr. Sentia os sapatos escorregarem ligeiramente no paralelo molhado. Chovia. A tarde estava a meia-luz, pois o Outono estava de partida e o Inverno começava a instalar-se.

Para entrar na casa da avó Rosa bastava levar a mão ao puxador e rodar. Estava sempre destrancada. Entrando, sentia-se o cheiro de madeira antiga, de uma casa igualmente antiga. Sentia-se até, o cheiro da humidade. Era o átrio. Tinha de subir as escadas,.. de madeira oca, barulhenta, forradas com alcatifa encarnada.

Atirava a pasta (ainda não havia mochilas, não em Darque, pelo menos) para o cantinho do corredor. Sim, porque a casa da minha avó estava cheia de cantinhos mágicos. Alguns serviam até para eu me esconder ou brincar com a Roseta (a cadela Pequinês com mau feitio…).

Na mesa estava uma chávena de leite quente com cevada. Leite de vaca… ordenhado nessa mesma tarde. Trazido pela Alice, até casa da minha avó, num cântaro de inox. Lanchava, comia o pão com marmelada, também feita pela avó Rosa… ah!! Grande, enorme, inigualável avó Rosa… O teu nome diz tudo.

A noite aproximava-se… o corredor, o dos cantos secretos, ficava escuro… os candeeiros de luz azul davam um tom pálido ao lusco-fusco. O aquecedor de varetas que “aquecia” a casa e assustava a humidade conferia um tom alaranjado ao chão em soalho meticulosamente encerado.

Fui para a salinha da Televisão. Na casa da minha avó havia uma salinha de televisão. Mas televisão com T grande… tinha primeiro de ligar um aparelho … esperar que aquecesse... e só depois a televisão a “preto e cinzento” funcionava…

Enquanto esperava, olhava o sofá… sempre no mesmo sofá, normalmente com a cadelita ao colo.. a avó (Bisavó) São.

- Vó-o.. hoje estudei os reis… quem fundou Portugal foi o D. Afonso Henriques… e D. Dinis mandou plantar o Pinhal de Leiria.

- … E de Azambuja e do Camarido… acrescentou o avô Tóne.

A avó São sorriu. Sempre de olhos fechados, quase nunca os abria… estavam cansados.

- Quando eu era pequenina – continuou a avó São – veio um senhor cá a Viana. Eu nem me lembro bem… mas bem me lembro de nos termos vestido todas muito arranjadas. E vários dias antes termos começado a apanhar flores para encher cestos com pétalas. E lá fomos todas atirar pétalas ao senhor e Gritar “Viva El-Rei Manuel”…

Eu… que nem do tempo do Salazar sou, escutei atónito aquelas palavras, e perguntei-me o que fora nesse dia fazer à escola. Aprender a história num livro, como se fosse ficção… quando parte dela estava sentada no sofá da salinha da avó Rosa, com a Roseta a dormir no colo…

Hugo Pinto

Dezembro de 2006