Avançar para o conteúdo principal

O Senhor das Uvas

É fim de Verão. O Outono já espreita e com ele a languidez de dias que diminuem. Uma toalha de praia esquecida no carro ainda tem o cheio do mar, da areia, das algas, do protetor solar. Os dias estão menos quentes. Também não são frios… Suspiramos o fim do verão e sentimo-nos nostálgicos quando a noite chega sem aviso. Ainda é tão cedo e já está a escurecer!... O fim de tarde é dourado pela mistura da luz do Sol, que entretanto se esconde, e de algum candeeiro mais zeloso do seu dever, que resolve adiantar-se na sua função …

De repente ouvem-se vozes na rua. Muitas vozes. Muita gente, atarefada. E ao mesmo tempo sente-se alegria na sua voz. É gente do campo que regressa das vindimas. Não resisto e corro à janela. Espreito… Um carro puxado por vacas avança lentamente, ultrapassando com dificuldade o paralelo da rua. O ritmo desajeitado dos animais e a incerteza do calceteiro que combinou o paralelo fazem o carro tremer. O grande tonel que vai em cima dele estremece e faz ranger as cordas que o seguram. As uvas, que mal se seguram dentro daquele, saltam a cada estremecimento… as crianças aproximam-se… atiro-lhes um cacho. Sou eu que vou em cima do carro?!? Estou a segurar-me com dificuldade para não cair entre abanões. Sinto-me o rei, o Senhor das Uvas. Toda aquela gente com ar de tarefa cumprida segue atrás do carro, ainda de tesoura de podar em punho. À frente o meu avô conduz as vacas, o carro, e todos os que o seguem. E eu vou em cima, pequeno, uma criança, mas Rei. O reinado dura apenas o tempo da viagem entre a quinta e o lagar. Mas as crianças não se importam de ser Reis, mesmo que seja por pouco tempo.

Em cima da mesa, como então, estão os doces e compotas que a minha avó (a avó Rosa… e sempre ela) ainda faz. Foi a cor avermelhada da marmelada caseira, o cheiro do doce de abóbora, que me fizeram recuar no tempo. Um passado mais longínquo a cada dia e sempre tão presente na minha memória.

Foste tu!... Foste tu quem reparou na cor da marmelada e me chamou à atenção. – Ah! É tão vermelha! – Levanto a cabeça e olho para ti. Sinto o meu coração encher-se de felicidade… ah! Estás aí! – (Que bem que me fazes.) - Toma! - Estendo-te mais uma fatia de pão com queijo e doce. Tu sorris… com os olhos, com os lábios… e eu, vaidoso, sorrio por dentro.

Faz-se um silêncio momentâneo… E de repente sai-me pela boca, em tom de brincadeira, como quem tem medo que a verdade se encavaque, pela pudicícia de se ver assim exposta:

- Um dia… ainda te peço em casamento!


Comentários

Estou muito contente por ler um texto escrito por ti, e ainda mais por saber que qualquer dia "ATAS".
Uma beijoca enorme e que tudo corra bem.
Prison Inside... disse…
Humm...
Parabens...apenas...

**

Mensagens populares deste blogue

Bolha de Sabão

Somos bolhas de sabão. Somos todos bolhas de sabão, que voam aleatórias pelo ensejo do destino. Feitas por Deus, o amigo imaginário dos adultos. Esse amigo imaginário que explica o que não tem explicação e que nos cria a ilusão de conforto quando o destino se nos afigura sombrio. Bolhas de sabão. Voam aleatoriamente chocado umas com as outras, aproximando-se, repelindo-se… Umas chocam e rebentam… Outras chocam, resistem, afastam-se… e depois rebentam. Outras chocam, fundem-se, e depois rebentam. Somos todos bolhas de sabão. Voamos aleatoriamente. Rebentamos. E neste voo aleatório criamos a ilusão de que podemos controlar a trajectória. Criamos a ilusão de que podemos cobrir a nossa bolha transparente com cores opacas. Mas as cores são apenas o reflexo do Sol. Nós criamos a ilusão. Deus tem um sentido de humor muito peculiar. Cria as bolhas e depois fá-las rebentar. Diverte-se deixando que as bolhas de sabão voem numa entropia, pululando entre emoções, desejos e projectos… Mas t...
Uma mente desocupada, é o recreio do demónio. Uma mente ociosa é o recreio do demónio. É mais uma daquelas frases que lí nas legendas de um qualquer filme e que, por alguma razão, guardei. Hoje, apetece-me imenso reescrevê-la. Uma mente desocupada, é o recreio do demónio. Cobiço esmiuçá-la, estudá-la, compreendê-la. Quando temos tempo livre e pouco para fazer, alguns de nós resolvem pensar. Pensar na vida, pensar no passado, pensar no futuro. A uma velocidade tal que pensamentos e sentimentos se misturam e complementam, poluindo-se biunivocamente, e tornando tudo muito confuso. Entramos assim numa espiral de loucura, de insanidade, em que tudo é posto em causa e não somos capazes de discernir a realidade da fantasia, o inovador do imbecil, enfim, o certo do errado. Uma mente perdida neste emaranhado não é uma mente ociosa. É uma mente que, por desocupada, resolve entreter-se com o que de mais lamacento vive no nosso subconsciente. São sentimentos que nos assaltam. Que nos ca...

Procura-se um Amigo

Vinícius de Moraes Não precisa ser homem, basta ser humano, basta ter sentimento, basta ter coração. Precisa saber falar e calar, sobretudo saber ouvir. Tem que gostar de poesia, de madrugada, de pássaro, de sol, da lua, do canto dos ventos e das canções da brisa. Deve ter amor, um grande amor por alguém, ou então sentir falta de não ter esse amor. Deve amar o próximo e respeitar a dor que os passantes levam consigo. Deve guardar segredo sem se sacrificar. Não é preciso que seja de primeira mão, nem é imprescindível que seja de segunda mão. Pode já ter sido enganado, pois todos os amigos são enganados. Não é preciso que seja puro, nem que seja de todo impuro, mas não deve ser vulgar. Deve ter um ideal e medo de perdê-lo e, no caso de assim não ser, deve sentir o grande vácuo que isso deixa. Tem que ter ressonâncias humanas, seu principal objectivo deve ser o de amigo. Deve sentir pena das pessoas tristes e compreender o imenso vazio dos solitários. Deve gostar de cria...